04 maio 2007

Sem Lógica, Nem Compasso...

Sim, é meio brega começar a contar alguma coisa dizendo: "quando ela nasceu", mas acontece que isso data de quando ela nasceu mesmo, e quanto a esse fato não há o que se possa fazer.

Parece aquelas duas tardes de infância em que eu decidida a escrever uma autobiografia chorava desesperada por não ter o que contar, o que me levou a desistir do empreendimento literário tão rapidamente quanto começou.

É de fato muito difícil escrever uma autobiografia aos oito anos.

Mas enfim, tudo isso pra dizer que não é impunemente que alguém lê um livro chamado em busca do tempo perdido, e sim, em mim também as coisas reverberam mais ou menos como combinado.

Ao menos na maior parte das vezes. Mas a história era assim:

Quando ela nasceu o médico disse que tinha algo no seu coração que batia diferente e descompassado, tomado de rompantes de vendaval.

Assim foi que durante a longa interminável infância ela se divertia em idas periódicas de tardes ao médico para espalhar adesivos pelo peito ainda inabitado de borboletas e para assistir aos desenhos das batidas que seu coração fazia. Ela gostava do ritual.


E o vento que passava por ali, segundo ele, seria pra sempre sempre inofensivo se continuasse de sutilezas assim, mas que nunca bateria igual ao coração da maioria das outras pessoas, pois que ele era único e dela: gostava deveras de tomar ventinho.

O que pra muitos parecia pequeno e sem importância pra ela era derradeiro e definitivo, pois que o coração que era só dela batia assim: sem lógica nem compasso, tomado de ventania.
Ela desde muito cedo aprendeu que a coisas mais especiais do mundo são as que nascem dali. Aprendeu a ouvir dele os gritos e as delicadezas; o espanto e o deslumbramento; o silêncio e a folia.

Aprendeu a brincar de claro-escuro, fazendo-o diminuir apertado quase sem respirar para depois explodir em confetes.

Aprendeu que nas músicas mais lindas do mundo residem todas as possibilidades de beleza e de transbordamento que ali existem, do bater rápido e miudinho pra depois congelar por segundos de tanta apoteose.

Ela que passou muito da vida desejando encontrar o momento em que, mesmo por instantes fugidios, o coração que era só seu batesse calmo, sossegado, marinhado.

Mas pouco, muito pouco acontecia, pois que o coração que era só dela batia quase o tempo todo assim: sem lógica nem compasso, e tomado de ventania.

Ela, que passara tanto tempo sentindo tanta alegria de tanto, tanta angústia de tanto, tanto tudo de tanto, um dia descobriu que existia algo no mundo chamado amor, e que ele chegava na vida das pessoas assim: no começo aos pulos, derrubando copos e batendo portas e escancarando janelas, pra depois quedar tranqüilo como árvore de outono.

Ao menos parecia ser assim no coração das outras pessoas do mundo, mas não no dela, pois que o dela não batia igual ao da maioria das pessoas do mundo, o coração que era só dela batia assim: sem lógica nem compasso e tomado de ventania, e não foi diferente com o amor.

O amor aprendeu logo que não era preciso ser criança para brincar como tal com ela, e fazê-la suar em romantismos de febre, e dar-lhe sustos suicidas, delírios de idealização das coisas todas do mundo, e impulsos de acreditar-se voando.

O amor fazia dela alguém sem par no mundo, e alguém igual a todas as outras do mundo. E foi assim.

E o coração que era só dela, que batia sem lógica nem compasso, aprendia logo que não se brinca de amor, que não se brinca de afeto, que não se brinca de sentir medo, posto que era grande, posto que era muito, posto que era tanto.

Mas o coração que era só dela esquecia logo em seguida tudo, e ela seguia revivendo aquelas mesmas tardes de infância, em que assistia deslumbrada aos desenhos das batidas descompassadas de seu coração, mas dessa vez com o peito cada vez mais inundado de borboletas, todas ali, todas guardadas, todas dela, como era só dela o coração que batia diferente do de todas as pessoas do mundo.


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